O governo do Rio de Janeiro está improvisando na área da Segurança Pública para instalar Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em comunidades aonde não houve preparo antecipado, como acontece na Rocinha. Curiosamente, isto ocorre em um ano eleitoral.
Na Rocinha, o policiamento é feito, segundo admitiu a própria Polícia Militar, por “estagiários” e não soldados. Por serem tratados ainda como em “fase de treinamento”, os recém-formados recebem como recrutas, menos do que é pago aos soldados. Mas, no fundo, todos exercem as mesmas funções de policiar.
Eles se formaram em maio, no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), na turma conhecida como 5ª Companhia Bravo, composta por 600 recrutas. Destes, cerca de 200 foram para a Rocinha. Lá ainda não há previsão de instalação das UPPs. Os demais formandos foram para o Complexo do Alemão, aonde a falta de estrutura também foi denunciada ao Jornal do Brasil na segunda-feira (30), por outro policial militar insatisfeito com o pouco caso do governo para as condições de trabalho nas UPP.
Alguns destes “recrutas” que estão na Rocinha, como um deles – o policial “Y” – confessou ao JB, têm dificuldades até para chegar ao 23º BPM, no Leblon, corporação à qual estão lotados. “A gente precisa de dinheiro para trabalhar. Para eles (oficiais), não importa se eu tenho aluguel, se eu preciso pagar a fralda dos meus filhos”, queixa-se. O curioso, pelo que diz, é que “até a Companhia que se formou depois de nós recebe vencimentos de soldados”, narra.
O improviso, porém, é maior. Além da falta de pagamento, o policial “Y” enumera outras situações pelas quais passam cotidianamente que, segundo entende, afetam a “dignidade” da tropa.
Com ou sem instalações, os policiais dão jornada de 12h em pé. A medida, segundo a PM, visa protegê-los contra possíveis ataques. Se estiverem em viaturas, ficam ao lado delas. Mas muitos chegam à Rocinha em ônibus da corporação e tiram o serviço a pé. “Se sentarmos, por dez minutos que sejam, e algum superior nos ver, podemos ser presos”, revela o policial “Y”, cuja identidade foi preservada para evitar represálias. Segundo ele, durante as 12 horas de jornada, uma única refeição é distribuída. Ao contrário do que ocorre no Alemão, onde os PMs ainda têm o banheiro das estações do teleférico que acabam usando, na Rocinha não há algo parecido.
Segundo o policial “Y”, é preciso avisar antes de sair da viatura para ir a um banheiro, do contrário é possível sofrer autuação por abandono de posto. “Não temos banheiro. Ficamos a mercê da boa vontade dos comerciantes para utilizar os sanitários deles. Pedimos pelo rádio para ser liberados, e se um colega tiver um problema intestinal e não tiver tempo de avisar, como faz?”
Ele insiste: “Não temos a quem recorrer, ficamos a mercê da sorte”, diz a fonte do JB.
Pagamento
Os policiais formados na Companhia Bravo, imediatamente lotados no Alemão e na Rocinha, recebem o salário bruto dos alunos do CFAP, cerca de R$ 1.040. Com os descontos, os vencimentos são inferiores a mil reais. Benefícios como auxílio transporte – cerca de R$ 100 -, e a gratificação prometida pela prefeitura do município – R$ 500 -, também não foram pagos até hoje. No caso dessa gratificação, a justificativa para não receberem é de que a Rocinha ainda não tem uma UPP. Por isto, os policiais têm dificuldade até para chegarem ao quartel. Como soldados, eles deveriam receber cerca de R$ 1.700 brutos.
Por causa da demora nesta promoção a soldados, ele relata um drama pessoal. “Entrei no CFAP com meu nome limpo e saí sujo, devendo dinheiro ao banco. Se não fossem meus amigos, nem telefone eu teria”, queixa-se. “Nem o auxílio transporte, que é pouco, estamos recebendo”, completa.
A surpresa da não promoção só foi conhecida quando os policiais checaram a conta bancária na data em que deveriam receber seus vencimentos. “A gente só soube do salário quando entrou na conta. Nem contracheque temos”, afirma.
O policial “Y” critica a falta de informações dentro da corporação. Segundo ele, recentemente um superior avisou que seria aberto um processo de expulsão sumária da Polícia Militar para o soldado que faltasse a um dia de trabalho. “Na maioria das vezes somos coagidos. O superior informou que se tiver falta no próximo serviço, vamos responder junto a um Conselho, em um processo de expulsão sumária da corporação, porque um companheiro, numa eventualidade, não teve dinheiro para ir ao trabalho”, conta.
Equipamento
Em relação ao equipamento, o policial deu informações similares às publicadas pelo JB, na segunda-feira, com base em depoimento de outro PM. O armamento da “UPP da Rocinha”, segundo diz, é composto majoritariamente por pistolas com mais de oito anos de uso. A quantidade de fuzis é ínfima, o que deixa vulneráveis os policiais no caso de ataques violentos. E eles ocorrem, embora nem sempre sejam noticiados.
Outros recrutas da Rocinha narram que, há um mês e meio, uma guarnição com quatro deles foi atacada por bandidos na Rua 1, uma das principais vias de acesso da comunidade. Ao cruzarem um beco, os PMs em serviço se depararam com cinco bandidos armados.
Os marginais abriram fogo. Foram mais de 60 disparos contra o veículo da PM. Os calibres das armas eram PT 380, PT 40 e uma submetralhadora de 9 mm. O fato aconteceu em um domingo, à tarde, quando havia muita gente no local. Os policiais não atiraram para preservar a integridade dos civis. O reforço pedido pelo rádio levou 30 minutos para chegar. Mas era tarde, os bandidos já tinham fugido.
“Entrou um armamento novo que também já está dando problema . Há pouquíssimos fuzis, não chega a um por viatura. Isso não existe. Se sofrermos uma investida de marginais com fuzis, vamos ter que procurar abrigo. Não há como revidar”.
Tráfico de drogas e doação
A Secretaria de Segurança Pública do Estado já explicou que o objetivo da pacificação das comunidades não é acabar com o tráfico de drogas, mas erradicar a ostentação de traficantes com armas e seu domínio territorial na região. O policial “Y” confirma, portanto, que o tráfico de drogas continua naturalmente na favela. Embora os marginais não disponham de armamento tão poderoso como no passado, ainda circulam com pistolas PT45, calibre capaz de grandes estragos.
“De vez em quando vemos alguém portando uma pistola PT45 dentro da comunidade. Não tem ostentação, mas há gente armada. O problema é a exposição”, relata. “Acredito que mesmo o nosso fuzil não vá funcionar, é muito antigo. Posso até dar dois tiros, mas ele vai acabar travando.”
O soldado conta ainda que os coletes usados pelos PMs na Rocinha foram doados por uma empresa, cujo nome não revelou.
De armas não letais, eles dispõem apenas de spray de pimenta. Seu uso, contudo, é controlado. No caso de um tumulto, de uma agitação da multidão, a única reação cabível, segundo ele, é a “covardia”.
“Se houver uma grande confusão, teremos de dar uma de covardes (apenas assistir ao fato). Se atirarmos para o alto, responderemos por incitação. Respondemos pelo tiro dado a esmo”.
Rádios
Ele também reclama que os rádios não funcionam, tal como denunciou o outro policial na semana passada. Segundo o policial “Y”, é comum o equipamento estar quebrado. Ele acrescenta: “Há viaturas paradas na Rocinha que não funcionam. Para socorrer alguém temos de pedir apoio. Faltam condições de trabalho, pessoal e financeira”, resume.
Jornada e alimentação
Na Rocinha, o regime é de doze horas trabalhadas por 24 horas de folga. Segundo o policial “Y”, o contingente de um plantão só é liberado com a chegada da rendição, o que costuma ultrapassar a jornada de 12 horas, sem nenhuma compensação.
“A gente acorda às quatro da manhã para chegar ao batalhão na hora, e só consegue sair da Zona Sul lá pelas nove horas da noite. É subumano ficar doze horas em pé”.
Outra reclamação é a comida. De acordo com ele, os soldados recebem apenas uma refeição por dia. A quantidade é econômica: arroz, feijão, carne e farofa. Além da escassez de alimento, os policiais precisam se revezar para comer.
“Recebemos uma quentinha e não temos onde comer, nem na viatura. Temos de esperar o colega almoçar para comer. Gastamos muita energia e aquele pingo de comida não é suficiente para alimentar quem está de prontidão. Se não tirarmos do bolso, ficamos só nessa refeição”.
Curso de formação
O soldado também critica o curso ministrado no CFAP, preparação “jogada” nos alunos da 5ª Companhia Bravo. A matéria de sobrevivência urbana, fundamental aos recém-ingressados para aprenderam a se portar em comunidade, teve apenas uma aula. “Quem gosta de combate treina por conta própria. Jogaram a gente lá dentro sem saber nada da geografia e da tática militar necessárias”, denuncia.
O trabalho na comunidades é dividido em três: na ‘visibilidade’, viaturas se espalham pelo local para monitorar a movimentação; o Grupo de Policiamento de Proximidade (GPP) faz o patrulhamento por rua; e o Grupo Tático de Policiamento de Proximidade (GTPP), estuda as ações táticas tomadas em incursões. Sua turma não pôde escolher entre as três áreas.
“Muitas vezes cheguei para trabalhar como GPP e descobri que estava em ‘visibilidade’, ou vice-versa. Sempre tínhamos que chegar mais cedo porque os horários das funções variavam. Antes de ir para a Rocinha, fizemos um serviço de praia. Esse foi o nosso estágio para vir para a rua e defender a sociedade”, ironiza.
Em relação à falta de estrutura, há situações risíveis: “Podemos parar uma moto que esteja irregular, mas não há quem reboque o veículo. Até temos liberdade de ação, mas faltam condições para dar continuidade ao trabalho”, diz.
Porte de arma
Apesar de ter o porte de arma, o policial “Y” ainda não conseguiu a liberação do documento necessário para retirar o armamento de uma loja legal. Para agravar a situação, diz, todo policial precisa portar a carteira de militar. Em caso contrário, pode ser preso.
“É muito fácil alguém nos pegar do serviço ou até sequestrar. Temos de ficar nos escondendo, essa é a realidade. A carteira de policial tem de ficar escondida.”
Este quadro de penúria e improviso o leva a concluir que há má aplicação dos recursos, prejudicando o serviço: “Estamos subutilizados. Somos como fantoches, para ser filmados pela Globo dizendo: ‘olha, a UPP funciona, tem muito policial na rua'”, critica. “Fiz concurso para melhorar de vida, não para ficar com o nome sujo. Vai ter gente ficando maluca, e para fazer uma besteira, como agredir alguém, não custa muito. A gente quer é trabalhar”.